Sempre acreditei que devemos fugir do maniqueísmo, não colocando as pessoas dentro de caixinhas que as classificam como boas ou más (como faz por hábito o cinema americano). Essa visão dual não pode ser justa com a complexidade humana. Todos temos nuances de bondade, de maldade e de um amplo arco-íris de sentimentos e vivências que desempenhamos durante nosso trajeto humano na Terra.
Mas recentemente sofri um choque de realidade. Um choque que foi tão radical, que me tirou o chão. Explico: por essência, apesar de me considerar humana com todos os sentimentos e vivências do leque que essa jornada proporciona, tenho em mim uma busca por ser uma pessoa decente (que eu julgava uma vontade comum a todos, independente de contexto).
E, talvez por uma visão incutida pela minha mãe, acreditei por bastante tempo que cada um oferece o seu melhor diante das ferramentas que tem disponíveis no papel que exerce.
Entretanto, me machuquei muito ao presenciar a maldade humana: a situação um bocado pessoal não vem ao caso, mas me vi diante de pessoas ruins. Pessoas que agem de má-fé, que querem usurpar tudo que outro ser batalhou para construir, das maneiras mais calhordas possíveis. Pessoas gananciosas (no pior sentido da palavra), que apenas são capazes de olhar para o próprio umbigo, sem um mínimo de empatia ou justificativas plausíveis.
Isso me causou raiva, indignação. Por semanas a fio me perguntei o que fazer/aprender com essa realidade: de ter encontrado seres humanos terríveis. Acordei durante a noite por vários dias seguidos me fazendo essa mesma pergunta: o que fazer ao me deparar com o pior que a humanidade é capaz de ser? Como digerir a maldade gratuita? Estamos vivendo tempos cruéis. Qualquer um que esteja pleno e feliz neste momento, tem algo de muito errado. Brasil e Portugal estão em chamas, guerras eclodem pelos quatro cantos do mundo, o ser humano mostrando sua pior face.
Neste final de semana prestigiamos a reabertura do Museu de Lisboa Palácio Pimenta, um museu que traça um trajeto histórico da cidade, passando desde o tempo neolítico até a Lisboa atual. É impressionante a riqueza de detalhes e informações que conheci sobre fragmentos do que aconteceu nesse pequeno território, no cantinho sul da Europa.
A história de Lisboa é difícil: começa com invasões romanas e mouras, se desdobra em lutas infindáveis por território, desemboca em uma sociedade teocrática cristã capaz de atrocidades em nome da religião e da moral, passa por inquisições que matam e torturam em praça pública, expulsa judeus e muçulmanos, coloniza e desbrava territórios além mar, escraviza e se apropria da vida de milhões de pessoas por mais de 400 anos, sofre um terremoto seguido de tsunami e incêndio dignos de um apocalipse, lida com uma dura ditadura durante mais de 40 anos, também regada de valores para a 'moral e bons costumes'. A cidade luminosa viveu tempos demasiado sombrios.
E tudo parece muito absurdo ao olhar contemporâneo: muito medieval, sangrento, sujo, dramático, ruim. Mas precisamos desses registros bem guardados de história, escancarando sem filtros toda a sujeira e maldade que enquanto seres humanos já fomos capazes. E temos o dever de, atentamente, compreender que todas aquelas pessoas que já não mais existem, foram seres complexos como nós somos: com desejos e vontades, medos. Prestar a devida atenção à história do que há de pior é importante para que possamos não nos iludir com a nossa própria inocência de imaginar que todos têm a bondade como essência.
Mas existe alguma luz na escuridão, e ela tem uma potência gigantesca. Depois de muitas semanas de reflexão, encontrei as respostas para as perguntas que me assombravam (o que fazer ao me deparar com o pior que a humanidade é capaz de ser? Como digerir a maldade gratuita?): vi uma senhora a ter dificuldades com as compras do supermercado, compreendi que estava passando mal e ofereci ajuda. Ela estava com tontura, um episódio de labirintite. Foi de braço dado comigo até a porta de casa, agradecendo mil vezes. Disse que todos passavam e, apesar de estarem observando-a, ninguém oferecia auxílio. Fiquei com o coração quente, feliz de poder ter sido guia naquele momento evitando uma queda grave.
Percebi que a resposta para pessoas terríveis está na consciência de desejar ser melhor. De, ativamente, cultivar a certeza de querer ser útil, de enxergar para além da própria bolha de problemas grandes ou pequenos. Que talvez possamos auxiliar de alguma maneira um vizinho, um cão que está perdido, uma senhora solitária que deseja conversar. Ajudar é muito, muito simples. Basta estar atento à volta, às necessidades básicas de afeto, diálogo, apoio, saúde. Com pouquíssimo é possível mudar o dia de alguém.
E em contraponto à maldade vale recordar que também somos proporcionalmente extraordinários. Os mesmos seres humanos capazes de serem péssimos, também fazem músicas emocionantes, também viabilizam filmes cheios de ternura como Aftersun, e Close, também pintam como A Noite Estrelada Sobre o Ródano, também organizam livros como Cartas Extraordinárias de Amor também escrevem histórias como O Filho de Mil Homens, poesias como Ana Martins Marques.
A arte me reconcilia com a humanidade que existe em mim.
Com amor,
Raquel Pellicano
Teatro
Ana Martins Marques
Certa noite
você me disse
que eu não tinha
coração
Nessa noite
aberta
como uma estranha flor
expus a todos
meu coração
que não tenho
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Filha, você é extraordinária! Te amo! Quanto orgulho sinto de você! Chorei ao ler o seu relato! São sim nos pequenos atos de bondade, de gentileza, que mostramos ao outro, que sim, a dor dele também importa! Obrigada por ser minha filha!
Raquel, não é coincidência o fato de termos passado por coisas distintas e termos encontrado as mesmas raízes que justificam a maldade e ainda, as mesmas inspirações que podem solucionar o problema.
Você nem imagina a poesia audiovisual que escrevi hoje, em uma tentativa de encontrar esperança em meio à maldade humana. Dizia algo como: "ninguém é feito cheio de ódio; nenhum grupo pode ser definido como apenas uma coisa ou outra; todo ser humano pode amar; e com toda a criação estamos conectados através da capacidade de amar; se usarmos todas as nossas conexões humanas para desempenharmos nosso amor, a maioria dos nossos problemas serão facilmente resolvidos."
Então, hoje eu escrevi algo para lidar com minha decepção, desenvolvi o pensamento de fortalecer meus atos de amor e minha esperança ainda não morreu por causa disso. E você também fez o mesmo. <3 não são os bons humanos que estão em extinção, eles só pararam de perceber o que é bom dentro deles.