Esta passagem aconteceu em uma sexta-feira à noite qualquer, em 1996.
‘Depois de uma tarde esparramada no tapete da sala da minha avó, montando casinhas de lego (enquanto escutava Chaves pela vigésima vez em Acapulco dentro da pequena televisão de tubo), minha mãe me busca para, antes de voltar para casa, dar um pulinho na video-locadora. É emocionante poder escolher, dentre tantas possibilidades, dois filmes para assistir no final-de-semana. Olho atentamente a imagem da capa e os cartazes de lançamentos na parede para, uma vez fisgada pelo visual, ler a sinopse de algumas opções no intuito de fazer uma escolha de diversão certeira.
Provavelmente aluguei um desenho da Disney que já havia visto antes, só pra cantar junto todas as músicas que sabia de cor. E ‘Mary Poppins’ ou ‘A Fantástica Fábrica de Chocolate’ (original), ou ‘Jurassic Park’, para ficar apavorada. Em algumas idas ao pequeno centro comercial, aproveitava para passar na loja de CDs e escutar uma ou outra música das Spice Girls, já que comprar o CD era algo que exigia uma economia de vários meses de mesada, e eu acabava preferindo gastar com algum almanaque de férias da Turma da Mônica.’
Nasci em 87, o que me faz ser da geração que vivenciou toda a revolução digital. Nós fomos bebês que escutaram LPs, crescemos com os CDs, as fitas K7 (da Xuxa e da Angélica), os vídeos em VHS. Se tudo isso parece um idioma alienígena para você, é provável que tenha nascido depois dos anos 2000.
Fico imaginando como seria viver uma infância onde eu pudesse escutar todas as músicas do mundo, ou assistir a todos os filmes do mundo, ou ler todos os livros do mundo. Como a Raquel de 9 anos se sentiria? Se por um lado tantas possibilidades ao alcance de um clique parecem um sonho incrível, a outra face da moeda é o pesadelo de nada mais despertar o interesse. Ou me paralisar diante de tantas cores e sabores. Dizem que, quando nos deparamos com a oportunidade de fazer uma escolha, tudo é mais fácil quando há a simplicidade de poucas opções — uma das maiores angústias que sinto na vida é a da possibilidade de não ser capaz de ler todos os livros que gostaria. Morrer com livros não lidos na estante me parece apavorante.
Há alguns dias comecei a escrever as ‘Páginas matinais’, recomendação da Julia Cameron nos livros ‘O Caminho do Artista’ e ‘A Arte da Escuta’. Escrever pela manhã, à mão, 3 páginas de fluxo de pensamento, me fez relembrar do tempo em que ainda enviava cartas. É como se, de alguma maneira, essa escrita fosse um diálogo sincero comigo.
Me pergunto se ainda hoje existem pessoas assim. Durante a minha infância e adolescência, escrever para os amigos era uma ótima forma de me conectar com eles. Há quanto tempo você não escreve uma carta para alguém? Não um e-mail — uma carta mesmo. Os e-mails me parecem frios e calculistas, trazem boletos para pagar ou diálogos com propostas de trabalho. Nenhum e-mail abraça ou afaga. As cartas infantis falavam sobre desabafos, dramas adolescentes, amores. Eram escritas à mão, com canetas de várias cores, perfume, adesivos, recheadas de declarações de amor fraternal, com desenhos e dobraduras em formato de coração. A minha letra treinada era mais bonita.
Eu mantinha amizades por correspondência também — com conhecidas de pequenas viagens que viravam confidentes até, um dia, alguém esquecer de responder. Escrever uma carta proporciona um sentimento que nenhuma mensagem no whatsapp pode substituir. É o ato de sentar, você e a ideia do outro na cabeça, em um diálogo imaginário que pode ou não ser respondido. É dedicar um tempo inteiramente às coisas que você gostaria de contar para alguém, de partilhar. Acho que toda carta é um ato de amor.
Hoje é uma artesania rara, guardada para poucos que ainda apreciam a troca postal. Eu adoraria voltar a receber cartas ao invés de boletos na minha caixa de correio.
💡Para finalizar, algumas recomendações que têm tudo a ver com essa reflexão: teremos, em breve, o curso ‘Arte Postal’, com a Inês Valente, e ‘Artesanias da Fotografia’, com a Jacqueline Hoofendy. Os dois fazem parte do cronograma 2024 do Passaporte Cultural. Outra dica imperdível é o curso de longa duração ‘A Escrita Expandida’, que aborda temas deliciosos como ‘A História Oral’, ‘Caligrafia Artística’ e ‘Metáforas da Memória’. Restam poucas vagas!
✨Garimpos para ver, ler e ouvir
👁️ Para ver: criei este board no Pinterest de Assemblagens fotográficas, e tenho achado absolutamente encantador (e assustador, para ser honesta)
👁️ Para ver: a mini-série Ripley ganhou o meu coração. É uma verdadeira lição de fotografia e cinematografia, com composições impecáveis e um lindíssimo preto-e-branco.
📚 Para ler: estou namorando o livro ‘Irmãs da revolução: Antologia de ficção especulativa feminista’. Trinta contos escritos por mulheres de diferentes lugares do mundo, trinta histórias em que a ficção especulativa discute o que é possível esperar da sociedade.
🎧 Para ouvir: fiz uma nova playlist instrumental para acompanhar minha leitura e minha escrita.
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Raquel Pellicano
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Revivi parte da minha infância lendo esse texto maravilhoso. Obrigado por compartilhar. :)