Sobre o 'Cadáver Exquisito' de Bella Baxter
Há uma semana assisti ‘Pobres Criaturas’ — Bella Baxter e sua história ganharam meu coração, não sem antes me prenderem, hipnotizada pela tela. Já há muito não sentia que a visita ao cinema valia o esforço e o gasto. Mas esta é, de fato, uma provocante alegoria social, que merece ser vista em grande escala. E revista, inclusive.
É importante ter em mente que, qualquer tentativa de comentário de minha parte será sempre insuficiente e injusta com este filme, inspirado no livro de mesmo nome, de 1992, escrito pelo escocês Alasdair Gray.
A criatura Frankenstein Bella, é mostrada em duas etapas distintas da vida: o seu precário desenvolvimento na casa do médico e cientista que a criou (que ela mesma chama de ‘Deus/God’) e as suas aventuras em busca de conhecer o mundo.
Aqui vale um pequeno adendo, já que fica difícil seguir com a minha fala sem explicar a origem de Bella: após encontrar uma mulher morta por suicídio, grávida, o cientista Godwin Baxter a trouxe de volta à vida, inserindo o cérebro da bebê em sua cabeça. Portanto, ao acordar, Bella, apesar de ter um corpo de mulher, contava com uma mente de bebê, e passou a maior parte da sua existência presa dentro da mansão de seu criador cientista, até tomar a decisão de partir para uma aventura, na qual, pouco a pouco, foi desenvolvendo sua capacidade intelectual e conhecendo as belezas e amarguras do mundo.
Mundo este de uma dimensão extravagante e fantasiosa, onde enxergamos questões e referências do passado e do futuro, no mais belo caldeirão retrofuturista: a cenografia, embora em vários momentos pareça diretamente saída de imagens desenvolvidas pela mais recente IA, com cores saturadas e detalhes surrealistas, em outros, nos leva direto aos palacetes do século 19 ou 18. Da mesma forma, o fantástico figurino, que muda à medida que Bella amadurece, constrói uma simbiose entre as mangas bufantes do período vitoriano e as mini-saias e sapatos contemporâneos, criando, para todos os efeitos, um universo que não pertence exatamente a nenhum tempo.
No que toca à fotografia, no início o filme acontece todo em um preto e branco de altíssima qualidade, com contrastes bem definidos e lindas imagens. É interessante acompanhar o explorar das possibilidades de entretenimento desenvolvidas na casa de um cientista maluco: de espatifar louças à tocar instrumentos desafinadamente com os pés, Bella tem ali o seu pequeno reino infantil, acompanhada de outras criaturas peculiares: um buldogue francês com corpo de galinha ou um ganso com corpo de cachorro.
Quando Bella parte para sua aventura fora das paredes de casa, o mundo adquire fascinantes cores intensamente saturadas, com um céu de eterno pôr-do-sol. As lentes se alternam entre grande-angulares olhos de peixe, com vinheta intensa quase que a funcionar como ‘uma luneta para outro mundo’, e imagens em tele-objetivas, com diafragma aberto e lindo bokeh.
No seu explorar, Bella consegue vivenciar o mundo de uma maneira que nenhum de nós foi ou será capaz: sem as amarras ou influências da cultura, do patriarcado, das expectativas comuns de como agir enquanto um ser humano do sexo feminino. Sem as regras impostas pela sociedade relacionadas à como/quando/onde, Bella tem atitudes de total honestidade para com os outros e com seus próprios sentimentos.
Depois que Bella é repreendida por cuspir comida durante uma refeição chique, ela diz, claramente "por que eu deveria mantê-la na boca se é revoltante?". O que me faz questionar e refletir sobre como agiríamos e quais atitudes tomaríamos em vida se não nos desenvolvêssemos sob o véu da moral e dos bons costumes.
É absurdamente lindo acompanhar Bella em suas descobertas das pequenas e grandes felicidades da experiência humana, que incluem, mas não se limitam a: dançar, comer, explorar novos lugares, transar, ler, filosofar, apreciar a música e se conectar com outras mulheres.
Aqui vale um destaque para a sua vivência se perdendo na Lisboa retrofuturista, onde o elétrico (bonde) é voador, mas os pastéis de nata, que Bella aprende a comer em uma só bocada, e o fado, seguem deliciosamente emocionantes.
Nas cenas de intimidade e sexo, Bella causou um tremendo bafafá que dividiu opiniões. Muitos questionam a necessidade de tais cenas no audiovisual, entretanto defendo veementemente que, aqui, elas são parte importante do descobrir das delícias e amarguras da vida e não são meros acessórios sem sentido.
Por último mas não menos importante, sempre penso no tamanho do desafio trazido pela produção audiovisual: para que um filme seja bom, muitas peças devem se encaixar. Do roteiro ao figurino, à produção, cenografia, atuações, tratamento de imagem, montagem, trilha sonora: este é um filme impecável! Corra para o cinema!
Ps.: eu não errei o título deste email.
O Cadavre Exquis é um jogo coletivo de imaginação, praticado pelos surrealistas no início do século XX. O movimento surrealista francês – movimento literário, filosófico e artístico que explorou o funcionamento da mente, defendendo o irracional, o poético e o revolucionário – inaugurou o método cadavre exquis, que subvertia o discurso literário convencional. Um primeiro jogador escrevia uma palavra num papel e dobrava-o; o segundo escrevia uma outra e voltava a dobrar e assim sucessivamente. A seguir, desdobravam o papel e descobriam uma frase. O nome surgiu de uma frase que resultou quando o exercício foi realizado pela primeira vez: “cadavre exquis boira le vin nouveau”.
“Para de ficar rezando e batendo o peito! O que eu quero que faças é que saias pelo mundo e desfrutes de tua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que Eu fiz para ti.
Para de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que tu mesmo construíste e que acreditas ser a minha casa. Minha casa está nas montanhas, nos bosques, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e aí expresso meu amor por ti.
Para de me culpar da tua vida miserável: Eu nunca te disse que há algo mau em ti ou que eras um pecador, ou que tua sexualidade fosse algo mau. O sexo é um presente que Eu te dei e com o qual podes expressar teu amor, teu êxtase, tua alegria. Assim, não me culpes por tudo o que te fizeram crer.
(…)Eu te fiz absolutamente livre. Não há prêmios nem castigos. Não há pecados nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro.
Tu és absolutamente livre para fazer da tua vida um céu ou um inferno.”
Fragmento do texto de Anand Dílvar — Conversaciones con mi guía: más allá del esclavo (2010)
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