Sou muito grata pela cidade estranha onde nasci. Brasília me trouxe a oportunidade de estudar arte contemporânea em uma das universidades com abordagens mais atuais das artes visuais no Brasil (mesmo que eu não fosse, ainda, capaz de compreender o valor que isso tinha).
Entrei para o ensino superior ainda incerta de como evitar concursos públicos (uma pressão compreendida por qualquer brasiliense). Contudo, tinha a certeza que encontraria ali uma nova proposta, outra ideia de vida.
A fotografia apareceu timidamente, em algumas disciplinas que encontrei nos currículos de Artes e Comunicação Visual, abrindo um universo novo de possibilidades que abarcavam uma área de atuação que, possivelmente, me daria a subsistência necessária para uma pessoa adulta (ainda vivendo sob a insistência da família para seguir carreira como servidora).
Trilhei um caminho galgado nas referências que apreendi no curso de Artes, digeri o que gostava e o que não gostava na construção de um imaginário visual para a minha fotografia comercial. Infelizmente ainda não enxergava o tamanho do potencial que estudar autoralidade poderia me proporcionar em termos de linguagem e trajetória. Devorei com voracidade tudo que poderia me ajudar a provar que eu conseguiria ser dona de mim sem que precisasse me acorrentar ao serviço público.
Me desgastei nas mãos das agências de modelos tiranas, que sugavam o sangue do fotógrafo e dos modelos com cachês pífios e promessas de sonhos impossíveis. Era triste acompanhar as famílias inteiras que depositavam em uma garota tímida com 13 ou 14 anos a esperança de salvação financeira de uma vida. Ela não viraria top-model (ninguém que eu fotografei, virou). Mas este trajeto me ensinou a lidar com pessoas, a dirigir, a construir a luz no estúdio fotográfico, a conhecer o meu papel, o papel do styling, da produção e da maquiagem na criação imagética - e a compreender que a independência vivendo de fotografia não era uma ideia utópica.
De volta à cidade, Brasília é planejada para quem conduz. Para levar, sem percalços, o motorista de A à B. Com muita objetividade, a cidade foi dividida por setores e segmentos, construída à base de coordenadas onde o preço a se pagar são a distância e a aridez implacáveis que se projetam à frente de quem não tem carro (seja por opção ou por falta de oportunidade financeira).
Não existe muito espaço para o flaneur na capital, nem para os encontros fortuitos na esquina. Brasília poderia facilmente ser puro desencontro, com relações frívolas e trabalhos burocráticos. Mas o f/508, este nosso espaço cultural que integro desde a minha formatura, me salvou — e sei que não só a mim, salvou muita gente. Virou, no centro da cidade de linhas e geometria quadrada, um oásis necessário de arte e cultura, de provocações, de encontros e esbarros afins, de discussões, de produção fotográfica com autoralidade. Foi vivenciar a gestão do nosso espaço físico que prolongou a minha relação com essa cidade esquisita.
Ao me mudar para Lisboa, passei a me relacionar com a cidade de uma maneira completamente diferente. Ser novo em um país desconhecido te proporciona um sopro de vontade de construir caminhos plurais, de conhecer outras máscaras possíveis de si.
Aposentei o carro (ao menos por hora) e passei a usufruir do transporte público. Os passeios com o cão viraram oportunidades de explorar as ruas da minha freguesia sem medo (sentimento que demorei a abandonar). Encontro na vida de bairro um vilarejo dentro da cidade grande: evito birras com o jornaleiro ou o vizinho — é tudo muito pequeno para fingir não enxergá-los à rua (prática comum brasiliense). Os encontros, para o bem e para o mal, são uma certeza.
Em um piscar de olhos 4 anos se passaram, e ainda estou tentando compreender onde me encaixo. É por isso que tomei a decisão de não mais voltar para o Brasil a trabalho — de me dedicar inteiramente a estruturar uma carreira em terras lusas e europeias, baseada na certeza do desejo de aqui estar e continuar, sem levar o sucesso brasiliense como muleta.
Os 15 anos fotografando no quadradinho foram incríveis, e a cidade foi mesmo gentil comigo. Tive muitas clientes que viraram amigas e amigas que viraram clientes, e fotografei mais de 1000 pessoas (com certeza você, ou alguém que você conhece). É tempo de virar esta página, ao menos por enquanto. Portanto, quando digo que a temporada 2024 em junho e julho será a minha última ida a trabalho, falo sério. Parece fatalista, mas não é. É a vontade de dar as boas vindas para versões minhas que ainda desconheço.
♥️Ainda tenho algumas vagas para ensaios fotográficos, e se você desejar conversar comigo sobre as possibilidades desenhadas para este último momento em Brasília, é só me mandar um 'oi' no whatsapp. Nos últimos dias, andei postando, nos stories do meu instagram, vários ensaios produzidos nas temporadas brasilienses mais recentes.
💡Uma recomendação: a vontade de escrever sobre o impacto das cidades onde habito nasceu depois de assistir a série Expats, da Amazon Prime. Tendo como pano de fundo a complexa tapeçaria dos residentes de Hong Kong, a série retrata um grupo multifacetado de mulheres e suas diferentes vivências como imigrantes na megalópole.
📣 novidades importantes no f/508:
✨ Estamos desenhando um novo curso que promete ser totalmente fora da caixa: A Escrita Expandida. Fique atento às nossas redes!
⏳ Você pode fazer parte de um Workshop presencial de Nu Editorial, em Brasília, comigo. Vai acontecer este ano e as vagas são bem limitadas. Dá pra saber tudo sobre aqui.
💡ATENÇÃO: já é possível entrar na lista de espera da Pós-graduação em Fotografia Como Suporte para a Imaginação turma 8, com início em março de 2025.
✨No dia 07/03 começará o curso Do instante decisivo à poesia do instante: exercícios e leituras sobre a fotografia de rua. Já viu? Em 09/03 daremos início ao novo Uma história da loucura nas artes visuais.
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Raquel Pellicano
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