Em defesa da foto feia
Não sei se você já parou pra pensar nisso, mas em apenas 1 minuto a humanidade produz mais imagens do que em séculos de história. Acho muito louca a profusão de poluição visual que chega pra gente todos os dias. Hoje, a partir dessa reflexão, compartilhamos com vocês um texto muito bem escrito pela querida amiga Carolina de Góes, em parceria com o f/508, mais atual do que nunca:
Em inglês, existe o termo eye candy, que pode ser literalmente traduzido como “doce para os olhos”, como se os olhos pudessem sentir gostosura. E eles podem. É uma delícia admirar uma fotografia bonita, da mesma forma que é uma delícia saborear uma fatia de pudim. Mas comer o pudim inteiro enjoa. Depois da sétima fatia, já não sentimos mais prazer em deglutir a desejada sobremesa. Vira tudo a mesma coisa. E o mesmo pode acontecer com fotografias bonitas.
É claro que os conceitos de bonito e feio são bastante discutíveis, mas o nosso olho ocidental, assim como o nosso paladar, é condicionado para aceitar certas coisas mais facilmente que outras. A sequência de Fibonacci — a famosa regra de ouro — está inculcada em nossos seres. Mesmo o olho não educado que decai sobre uma imagem bonita é capaz de reconhece-la como bonita. E quanta imagem bonita temos hoje! Basta um breve passeio pelas redes sociais para saciar qualquer fissura por açúcar que o olho possa ter.
A democratização do acesso ao fazer fotografia (coisa boa!) com o advento da fotografia digital e, mais recentemente, dos dispositivos móveis, nos trouxe uma avalanche de imagens diárias.
O projeto 24 Hrs in Photos do curador e fotógrafo Erik Kessels nos dá uma ideia concreta da quantidade de imagens que publicamos diariamente. No projeto, ele imprimiu todas as fotografias postadas em um único dia, de uma única plataforma online, o Flickr. As fotografias foram despejadas no espaço da galeria, em impressionantes montanhas de papel brilhoso. Isso em 2011, hoje as montanhas seriam ainda maiores.
O aspecto geral da instalação nos lembra um lixão. A individualidade de cada imagem é descartada. O que ele fez foi basicamente materializar o que vivemos virtualmente. Com tanta fotografia por segundo, fica difícil separar o joio do trigo, até mesmo na nossa própria produção. Um dos maiores desafios para o/a fotógrafo/a de hoje é editar seu trabalho. Em vez de 36 cliques para editar, hoje temos 1000. O que faz uma imagem valer mais do que a outra?
Não existe uma resposta certa para essa pergunta, mas desapegar da beleza pode ser uma solução interessante a experimentar. No Brasil somos filhos da escola francesa: composição lapidar, luz tão linda que dá vontade de lamber. No entanto, há uma tendência na fotografia latino-americana de valorizar o conteúdo sobre a forma.
Séries e narrativas estão sendo desenvolvidas, acima da imagem única que fala por si, especialmente porque é muito mais difícil contar uma história em uma única foto em tempos de superexposição a imagens lindas. Valorizar o conteúdo sobre a forma muitas vezes exige que desapeguemos da beleza. E eis que vem a foto feia, sem culpa, para nos salvar do diabetes onipresente da fotografia popular.
Os americanos estão fazendo isso há décadas; vide Walker Evans, Helen Levitt, Lee Friedlander, entre muitos outros. Suas imagens nos causam sensações profundas e o ímpeto de querer entender, saber mais, e é aí que está a força da poética da imagem. Até mesmo Eggleston cortava um pezinho de vez em quando.
Não estou defendendo que façamos fotos ruins, muito ao contrário: a técnica deve ser aprimorada até o ponto em que a possamos desconstruir, como o clássico touro de Picasso. Picasso chegou a um nível de síntese onde meia dúzia de linhas não só traduzem o objeto retratado, como também traduzem a assinatura do artista. Todos sabemos que esse poder de síntese é muito difícil de alcançar, mas, para começar, podemos exercitar o desapego à perfeição e nos perdoarmos um pouquinho. E fazer fotografias feias de propósito, fotografias feias que têm, em sua essência, uma bela poética, solidamente calcada em conteúdo.
Carolina de Góes
✨Para ver, ler e ouvir
👁️Para ver: “Coisas que você queria dizer, mas nunca disse.” • O artista @geloyconcepcion criou este projeto para fornecer um local para coisas que queríamos expressar, mas não conseguimos, porque não temos coragem de fazê-lo, porque podemos parecer loucos, porque é tarde demais ou porque podemos machucar alguém. Você pode participar enviando uma nota ou uma foto, basta clicar no link no perfil dele e responder o formulário. (em inglês)
👁️Para ver: adoro as imagens lúdicas e o romantismo da @mooncrystalight, artista coreana baseada na França.
📚Para ler: já recomendei aqui antes, mas sempre vale reforçar - O livro das semelhanças, da Ana Martins Marques, é um mergulho delicioso na poesia contemporânea. Aliás, você já se abriu para explorar esse universo? Um começo interessante pode ser também o livro Poema-piada: breve antologia da poesia engraçada, idealizado pelo querido Gregório Duvivier. Uma delícia de leitura com 27 poetas brasileiros.
🎧 Para ouvir: recentemente conheci a Rádio Suza FM, podcast de produção caseira que é uma companhia deliciosa para lavar louça, desenhar, ou passear o cão. A curadoria de músicas é fenomenal, e os comentários sobre cada uma delas são bastante pertinentes.
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É isso, queridos! Espero que tenham terminado essa leitura mais inspirados e animados para a semana que começa. Gostou do que encontrou aqui? Encaminhe para um amigo, recomende! Isso significa muito pra gente. Tem alguma questão? É só responder a este email, que falará diretamente comigo. Beijinhos e até a próxima,
Raquel Pellicano
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