É bem verdade que a discrição ainda é difícil para um fotógrafo. O aparato fotográfico, por si só, contém toda uma aura de presença, a câmera chama imensa atenção em qualquer recinto.
💭Basta alguém aparecer com um equipamento de lentes intercambiáveis para que todos se ajeitem, arrumem as madeixas, chequem se não há uma casquinha de feijão perdida no sorriso, ajustem a postura. A câmera não se deixa esconder, nem passa despercebida: produz uma ansiedade enorme pelo resultado de um instante.
É fato que não queremos ser vítimas de um segundo que não nos enaltece, que não faz jus à melhor versão que enxergamos de nós mesmos. O mentiroso corte fotográfico, que procura resumir uma existência em uma imagem, nem sempre é gentil.
Apesar de termos alguma noção de que toda a complexidade da beleza de alguém é formada pelo conjunto do seu jeito de agir, falar, se movimentar, andar, ser, se expressar, e não pode estar inteiramente contida na fotografia, ainda nos deixamos enganar por figuras exageradamente retocadas, ainda podemos ir ao fundo do poço por uma péssima fotografia de nós mesmos:
— Será que eu sou mesmo assim?
pensei eu em um momento de total desgosto ao vislumbrar uma fotografia cruel.
O mito do espontâneo
É comum encontrar fotógrafos com uma vontade quase impossível: a busca pela imagem capturada de maneira ‘espontânea’. Mas é fato que, enquanto a câmera se fizer presente, essa façanha não é muito viável. Qualquer tentativa de espontaneidade que não pertença ao universo voyeur das imagens roubadas, se perde facilmente diante do aparato fotográfico.
✨Mas, um dia, houve um fotógrafo que fez mágica, conseguindo se tornar, finalmente, invisível. Você conhece a história do Miroslav Tichý?
⏳Miroslav nasceu na República Tcheca, em 1926. Estudou pintura e artes em Praga, mas desistiu da carreira de artista quando, com a tomada do regime comunista em 48, se percebeu obrigado a ilustrar trabalhadores ao invés das suas belas musas.
Rebelde e anti-regime, decidiu deixar a barba crescer, largou o cuidado com a aparência e passou a viver como um mendigo na vontade de se tornar um párea invisível.
Apesar de desapontado com sua investida artística inicial, acabou por se envolver com a fotografia às voltas dos anos 50. Excêntrico para alguns, maluco para outros, Tichý construía suas câmeras artesanalmente, somente com o uso de papelão e sucata.
Aquela estranha figura peregrinava pelos parques, jardins e balneários, na captura especialmente de cenas quotidianas com personagens mulheres. Muitas delas não se incomodavam com a sua presença, algumas até posavam despretensiosamente, com a certeza de que aquelas imagens nunca veriam a luz do dia, já que uma câmera daquele tipo não seria capaz de fotografá-las pra valer.
Mal sabiam elas que sim, suas câmeras fotografavam de verdade, e aquelas imagens fariam em breve parte do grande acervo do fotógrafo que fazia ainda interferências e desenhos nas ampliações e no negativo.
A excentricidade de Miroslav o tornou um fotógrafo capaz do impossível: retirou a força e a presença do aparato fotográfico, conseguindo as únicas fotografias verdadeiramente espontâneas e não roubadas.
Miroslav faleceu em abril de 2011.
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Raquel Pellicano
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