Hoje talvez aconteça o inevitável — não consigo não transformar esse espaço de reflexão em abrigo para opiniões muito pessoais ou coisas muito íntimas. Por um tempo busquei equilibrar a escrita corporativa (já que falo em nome do f508) e as pessoalidades. Mas a verdade é que, na medida que o hábito da escrita se instala, fica cada vez mais complicado separar o ‘sentir’ do ‘fazer’. Então, se pra você neste espaço não cabe coração, aviso que termine a leitura agora mesmo.
Para alguém que você não conhece (ou talvez conheça), o mundo acaba hoje. O mundo acabou ontem. E vai acabar amanhã para muitos outros. E daqui a um mês. Daqui a um ano. Escrevendo essa carta, nunca estive tão cara-a-cara com o medo do meu fim de mundo particular.
Fiquei por 30 dias doente com o que começou com uma gripe, e se transformou em uma dor dilacerante no lado esquerdo do tórax. Sem querer ser fatalista ou dramática, já é hábito, pra mim, lidar com dores no corpo, por conta da fibromialgia. Mas a natureza, a localização e a potência da dor me colocaram de frente com o medo do pior diagnóstico.
Acordei com a dor em tal intensidade que decidi ir às urgências (como dizemos em Portugal), ou à emergência, como dizem no Brasil. Fiz dois raios-x, exames de sangue, tomografia. Fui a um pneumologista, que analisou cuidadosamente todas as imagens e, finalmente, o diagnóstico, trazido com a maior doçura do mundo:
— Não tem nada aqui. A sua dor é algo que, o meu conhecimento e a medicina, que são muito limitados, não conseguem ainda alcançar. Você tem fibromialgia?
Neste caso, tive duas notícias, uma muito boa, e outra ruim: beleza, eu não estou morrendo (ao menos não mais rapidamente do que qualquer outra pessoa). Por outro lado, a minha dor, que não se traduz em imagens, é extremamente tangível e incapacitante. Dentro de mim, latente, acho que residia esse temor, da dor ser somente mais um sintoma da fibromialgia que me assombra com sensações invisíveis.
A fibro (tô íntima, já), é solitária, sorrateira… ninguém sabe que você está sofrendo, ninguém sabe que você talvez esteja sentindo a maior dor da vida. Porque a verdade é que você não está morrendo — isso te faz parecer uma pessoa comum. Isso reduz o seu ‘sentir’ imperceptível à coisa menos importante que todas as urgências do mundo contemporâneo. E esse bafafá me fez lembrar da fotografia (por incrível que pareça).
A fotografia sempre foi estigmatizada como um registro indelével do ‘real’. Uma prova de existência: se algo foi fotografado, é porque existiu. Se um evento não tem fotos, não aconteceu. É esse mesmo estigma que levou pessoas a acreditarem que a fotografia é realizada por um aparato mecânico, portanto não pode ser considerada arte. E esse pensamento, pequeno, é avidamente rebatido pelos fotógrafos e artistas: o resultado de uma fotografia depende do recorte de cada fotógrafo, da lente escolhida, do ângulo, algumas vezes, da direção. Dê um mesmo objeto e uma câmera na mão de 50 indivíduos: todos registrarão de maneiras diferentes, porque somos seres humanos, e não robôs (ao menos até o presente momento). Sobre isso, por Barthes, “O que a foto reproduz infinitamente acontece só uma vez. A fotografia repete mecanicamente o que não pode ser repetido existencialmente nunca.”
Ainda tem outros fatores relevantes para essa discussão: o extra-quadro, o que ficou de fora da imagem, por vezes diz mais do que o que foi objetivamente fotografado. Quais narrativas se encadeiam ao redor daquele instante?
E assim, volto para a minha odisseia. Sinto uma dor paralisante que não se traduz em imagens: para algumas pessoas e médicos, ‘se não aparece no exame, é porque não existe’. Então isso significa o quê, exatamente? Que perdi a cabeça? Só sei que, mesmo e apesar de não aparecer imageticamente, a dor se faz presente. E eu vou ter que aprender a curá-la sozinha, com recursos medicinais que abrem mão, levemente, da minha eloquência e desenvoltura. São o que a tecnologia é capaz de alcançar.
Fora isso, sigo focada nas pequenas felicidades: tomar sol na janela pela manhã, fazer um bolo infalível e delicioso, café coado, um chá especial, um leve alongamento, o bom dia do cãozinho, o carinho e a conversa com as plantas, o desenho e a escrita sem expectativa de grandes produções.
Já passadas algumas semanas do não-diagnóstico, me apego aos pequenos afagos e me sinto, a cada dia, mais feliz e grata, por, de fato, não estar morrendo (novamente: ao menos não mais rápido do que qualquer um).
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Raquel Pellicano
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A dor, seja física ou emocional, embaça a vida. Enquanto tivermos corpos físicos, astrais e etéricos, temos que lidar com isso. Do lado bom, a dor serve como alerta para o que acontece conosco. E mais: uma hora passa (ou muda de lugar...😬). Enfim , espero que você já esteja melhor. Beijoca.💋
Me lembrei daquele ensaio da Virgínia Woolf sobre estar doente, em algum momento ela diz que a doença é um confessionário, ou algo assim, como se a saúde escondesse algumas verdades; e foi um pouco do que senti lendo seu texto e as imagens. Espero que as dores sejam cada vez menores do que o prazer das pequenas felicidades.