Para explicar o meu ponto para quem não têm uma relação muito estreita com a imagem, preciso, primeiro, trazer um pequeno recorte de contexto do nascimento da fotografia.
Antes do surgimento da imagem fotográfica, o fenômeno físico da câmara obscura era um recurso usado por vários pintores de maneira a desenvolver uma imagem realista. Um pintor considerado competente no seu ofício não era exatamente aquele que expressava seus sentimentos através da arte — mas o que era capaz de registrar de forma fidedigna (o tanto quanto possível) a realidade. A pintura era uma das poucas tecnologias de registro viáveis da visualidade de uma era. Tinha o caráter de documento.
Encurtando uma história longa: em 1826, Niépce conseguiu, pela primeira vez, fixar uma imagem em uma superfície fotossensível — e, em 1839, o daguerreótipo, desenvolvido por Daguerre a partir da invenção inicial de Niépce, passou a ser comercializado. Nascia, então, a fotografia, que tem a sua história intimamente conectada ao surgimento das vanguardas artísticas.
Com o nascimento do aparato fotográfico, houve uma ruptura importante na linha do tempo das artes visuais: os pintores já não tinham a necessidade de esmero técnico, dado que sua função primordial, mudou. Agora, mais do que nunca, a pintura se afirmava como uma forma de expressão livre de paradigmas e regras. Multiplicaram-se, no séc. 19, os movimentos vanguardistas que hoje conhecemos tão bem: impressionismo, expressionismo, surrealismo, futurismo, e todos os outros ‘ismos’ que tiveram seus ecos espalhados em muitos pontos do mundo. Surgia a arte moderna e suas patotinhas.
💡O paradigma, é: no instante em que a pintura deixou de ter na sua essência o caráter documental e passou a ser definitivamente arte e expressão, a fotografia foi logo estigmatizada como ‘mais real do que o real’. Se algo foi fotografado, é porque aconteceu. Documento, registro, verdade. Todos os adjetivos foram colados à imagem fotográfica.
Na fotografia, existe uma realidade tão sutil que se torna mais real que a realidade.
– Alfred Stieglitz
Acontece que não é tão simples. Fotógrafos surrealistas como Man Ray, Dora Maar e Florence Henri (para citar alguns), cortaram um dobrado na busca de provar que a fotografia também poderia figurar no hall das artes visuais (e, inclusive, flertavam com todas as vanguardas artísticas).
Não preciso nem começar a dizer o quanto é equivocada a ideia de que uma fotografia é realidade pura. Já falamos sobre isso em outros carnavais. O recorte fotográfico é um ponto de vista tão único e tão pessoal, que, mesmo de maneira inconsciente, a fotografia carrega um bocado de informações sobre quem está por trás da câmera. Existem milhares de pontos de vista possíveis sobre um mesmo assunto. Então SIM, fotografia também pode ser arte, e isto não se discute. Entretanto a meu ver, a questão anda mais contemporânea do que nunca.
✨No instagram, a pintura e a escultura são consideradas expressões artísticas e culturais — e, após uma deliberação recente da META, a nudez é aceita sem censura se for originária de obras de arte. Há pouco um dos robôs do instagram deletou por engano ‘A origem do mundo’, pintura de Courbet. Rapidamente a imagem foi recobrada, uma vez que se provou parte do acervo do museu D’Orsay.
Aí é que está: apesar de liberar a nudez na pintura e na escultura, a repressão da imagem fotográfica está mais intensa do que nunca. Eu já não consigo divulgar o meu trabalho, mesmo escolhendo as imagens mais sutis. É exaustivo buscar adaptar a fotografia às regras do jogo do instagram. Antes era possível criar uma mancha escondendo detalhes sensíveis para o algoritmo, como mamilos femininos, nádegas e genitálias. Hoje, qualquer parte do corpo exposta pode ser considerada uma infração. Tons de pele em excesso ou um umbigo, uma barriga, são rapidamente penalizados pela plataforma.
Percebem onde eu quero chegar?
As mídias sociais, em pleno século XXI, reforçam um estigma que os fotógrafos tentam abafar desde o surgimento da fotografia como expressão: de que fotografia não é arte.
Qual é, afinal, o sentido, de liberar a nudez na pintura, na escultura, e vetá-la na fotografia? Porque um corpo nu é considerado tão ofensivo, se nascemos todos pelados? Aliás, para completar a reflexão: porque a nudez é indecente aos olhos da META, mas a violência e o discurso de ódio, não o são? Se o intuito é tornar a rede ‘mais segura’, a violência deveria ser tão firmemente vetada quanto qualquer pele.
O mundo precisa é de menos hipocrisia.
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Raquel Pellicano
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Coincidência! Hoje comecei a ler o livro “The History of Photography” publicado pela Taschen, que é feito com base na coleção de George Eastman (fundador da Kodak), e logo na introdução, o conceito de que a fotografia é muito mais além do objeto fotografado também está lá. Ainda estou no início, onde a historia de Louis Daguerre e de como a fotografia entrou na sociedade francesa e logo mundial está sendo contada como fotos espetaculares. Algumas inclusive de nudez feitas naquela época, ainda que sem pretensão artística. Suponho que o livro não vai chegar no Instagram…mas está valendo a pena ver que já em meados do século 19 a fotografia era talvez melhor representada sem Instagram.